sexta-feira, 13 de abril de 2012

Topografia elementar


Talvez ainda não esteja claro por que eu vi parar aqui. Deve ter sido por algo mais do que uma espinha. Não mencionei que nunca havia visto aquele médico antes, nem que ele levou quinze minutos ― ou vinte, talvez ― para resolver me internar. O que é que eu tinha de tão demente que em menos de meia hora um médico me despachou para o hospício? E ele me tapeou : umas duas semanas. Foram quase dois anos. Eu tinha dezoito anos.
Minha internação foi voluntária. Tinha que ser, pois eu era maior de idade. Era isso ou um mandato judicial, se bem que, no meu caso, nunca teriam conseguido um mandato judicial. Mas eu não sabia disso e , portanto, internei-me voluntariamente.
Eu não era uma ameaça para a sociedade. Seria uma ameaça para mim mesma? As cinquenta aspirinas... mas isso eu já expliquei. Eram metafóricas. Eu queria me livrar de um certo aspecto da minha personalidade. O que fiz com aquelas aspirinas foi uma espécie de auto-aborto. Por algum tempo, deu certo. Depois, o efeito passou, mas não tive coragem de fazer de novo.
Vejam pelo ponto de vista dele. Estávamos em 1967. Até mesmo vidas como a dele, vidas profissionais, vividas nos subúrbios elegantes, no meio do verde, tinham um estranho abstrato, uma contracorrente originada em outro mundo ― o universo baratinado e à deriva da juventude sem sobrenomes ― que tirava as pessoas do prumo. Usando a linguagem dele, poderíamos chamar esse modo de "ameaçador". O que é essa garotada está fazendo? E aí, de repente, uma dessas jovens entra no seu consultório, vestindo uma saia do tamanho de um lenço, ostentando no queixo um monte de espinhas e falando em monossílabos. Está chapada, ele conclui. Torna a conferir o nome anotado no bloco à sua frente. Não foi apresentado aos pais dela numa festa, há dois anos? Do corpo docente da Harvard... ou seria do M.I.T? As botas dela estão gastas, mas o casaco é de boa qualidade. O mundo lá fora é ruim, como diria Lisa. Ele não pode, em sã consciência, devolvê-la a esse mundo, onde seria arrastada pela maré subsocial que volta e meia invade o seu consultório e nele atira outras iguais a ela. Uma forma de medicina preventiva.
Estarei sendo generosa demais com ele? Há alguns anos, li que foi acusado de assédio sexual por uma ex-paciente. Mas isso vem acontecendo muito, acusar os médicos virou moda. Vai ver que era apenas muito cedo, naquela manhã, tanto para ele quanto pra mim, e ele não atinou com o que fazer. Vai ver que ― e isso é mais provável ― ele apenas quis tirar o corpo fora.
Já o meu ponto de vista é mais difícil de explicar. Eu fui lá. Primeiro, fui ao seu consultório, depois entrei no táxi, subi a escadaria de pedra no Setor Administrativo do Hospital McLean e se não me falha a memória, sentei-me numa cadeira, onde passei quinze minutos esperando para assinar a minha renúncia à liberdade.
Quem pretende fazer uma coisa dessas precisa obedecer a vários pré-requisitos.
Eu estava tendo um problema com padronagens. Tapetes orientais, pisos de cerâmica, cortinas estampadas, coisas deste tipo. Pior de tudo eram os supermercados, com seus corredores lembrando tabuleiros de xadrez compridos e hipnóticos. Quando olhava para essas coisas, eu via outras coisas dentro delas. Pode parecer que eu sofria de alucinações,mas não era o caso. Eu sabia que estava olhando para um piso ou para uma cortina. Mas suas padronagens pareciam conter representações em potencial que, em estonteante sequencia, ganhavam uma vida breve e fugidia. Aquilo ali podia ser... uma floresta, uma revoada, de pássaros, a foto da minha turma da segunda série. Mas não era. Era um tapete, ou coisa parecida, embora as visões fugazes do que poderia ser me deixassem exausta. A realidade estava se tornando demasiado densa.
Também vinha acontecendo alguma coisa a minha percepção das pessoas. Muitas vezes, ao olhar para o rosto de alguém, eu não conseguia sustentar uma conexão ininterrupta com o conceito de rosto. A análise sintática de um rosto pode revelar um objeto estranho : mole, pontudo,cheio de respiradouros e pontos úmidos. Era o contrário do meu problema com os desenhos. Em vez de identificar um excesso de significados, eu não enxergava significado algum.
Mas eu não estava simplesmente pirando, despencando pelo poço na direção do País das Maravilhas. Meu infortúnio ― ou salvação ― era ter perfeita consciência das minhas interpretações equivocadas da realidade. Nunca " acreditei " nas coisas que via ou pensava ver. Mais do que isso, compreendia corretamente cada uma dessas estranhas atitudes.
Pois bem. Aí eu dizia a mim mesma: você está se sentindo isolada e diferente das outras pessoas e por isso projeta nelas o seu desconforto. Quando você olha para um rosto e vê uma massa de borracha, é porque teme que o seu rosto seja mesmo uma massa de borracha.
Essa lucidez permitia que eu me comportasse normalmente, o que suscitava algumas questões interessantes. Será que todos viam aquilo e fingiam que não viam? Seria a insanidade uma simples questão de parar de fingir? Se algumas pessoas não viam aquelas coisas, o que estava acontecendo com elas? Estariam cegas... ou o quê? Perguntas como estas me deixavam abalada.
Alguma coisa coisa havia sido descascada , a cobertura ou casca que existe para nos proteger. Eu não sabia ao certo se essa cobertura fazia parte de mim ou estava nas coisas do mundo exterior. Na verdade, isso não importava, pois onde quer que tivesse estado, não estava mais.
E este era o pré-requisito mais importante, o de que qualquer coisa podia ser outra coisa. Tão logo admiti isso, concluí que podia estar louca ou que alguém poderia me achar louca. Como podia ter certeza de que não estava, se não podia ter certeza de que uma cortina não era uma cordilheira?
No entanto, devo admitir que eu sabia que não estava louca.
O que pesou definitivamente na balança foi um outro pré-requisito: o meu estado de contrariedade. Minha ambição era negar. Fosse o mundo denso ou oco, ele só provocava minha negação. Quando era para estar acordada, eu dormia; se devia falar, me calava; quando um prazer se oferecia a mim, eu o evitava. Minha fome, minha sede. minha solidão, o tédio e o medo, tudo isso era, sempre, uma arma apontada para meu inimigo, o mundo. É claro que o mundo não estava nem aí para esses sentimentos, e eles me atormentavam, mas eu extraía uma satisfação mórbida do meu sofrimento. Ele confirmava a minha existência. Toda a minha integridade parecia residir em dizer Não.
Portanto, a oportunidade de ser encarcerada era simplesmente atraente demais para que eu resistisse a ela. Era um Não descomunal ― o maior Não do lado de cá do suicídio.
Um raciocínio perverso. Por trás dessa perversidade, porém, eu sabia que não estava louca e que eles não poderiam me manter trancafiada num hospício.
 
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