sexta-feira, 27 de abril de 2012

Topografia aplicada


Duas portas trancadas, separadas por um espaço de um metro e meio aonde a gente tinha que esperar,enquanto a enfermeira passava de novo a chave a primeira porta e destrancava a segunda.
Logo depois delas, três cabines telefônicas. Então, dois quartos individuais, a sala de estar e a copa-cozinha. Essa disposição assegurava aos visitantes uma boa impressão inicial.
Para lá da sala de estar e dobrando o corredor, contudo, as coisas mudavam.
Um corredor comprido, muito comprido: comprido demais. Sete ou oito quartos duplos de um lado, a sala das enfermeiras no centro do outro lado, ladeada pela sala de reuniões e pela sala de hidroterapia. As lunáticas à esquerda, a equipe de funcionários à direita. Os banheiros e chuveiros também ficavam à direita, como se os funcionários tivessem o direito e supervisionar nossos atos mais íntimos.
Um quadro-negro com nossos vinte e poucos nomes escritos em giz verde e, ao lado de cada um, espaços onde registrávamos com giz branco o nosso destino, a hora do retorno. O quadro-negro ficava pendurado bem em frente à sala das enfermeiras. Sempre que alguém ficava confinado àquele pavilhão, a enfermeira-chefe escrevia CONFINADO ao lado do seu nome, com giz verde. Ficávamos sabendo de uma internação com antecedência quando um novo nome aparecia na lista ― às vezes, um dia antes de seu dono aparecer no pavilhão. Quem recebia alta ou morria continuava algum tempo na lista, num tributo silencioso.
No final do corredor terrível, a terrível sala de televisão. Gostávamos dali. Pelo menos, achávamos melhor que a sala de estar. Era bagunçada, barulhenta, enfumaçada e ― mais importante ― ficava do lado esquerdo, o lado lunático das coisas. No nosso entender, a sala de estar pertencia à equipe de funcionários. Com frequência nos manifestávamos para que nossas reuniões semanais fossem transferidas da sala de estar para a sala de televisão; mas isso nunca aconteceu.
Passando a sala de televisão, o corredor dobrava mais uma esquina. Mais dois quartos individuais, um quarto duplo, um banheiro ― e a solitária.
A solitária era do tamanho de um banheiro residencial. A única janela era a da porta, reforçada com tela de galinheiro, permitindo que espiassem para ver o que a gente estava fazendo. Não dava para fazer grande coisa ali dentro. Sobre o piso de linóleo verde, apenas um colchão sem lençol. As paredes estavam descascando, como se alguém as tivesse atacado com unhas ou dentes. A solitária, supunha-se, devia ser à prova de som. Não era.
Podíamos nos enfiar na solitária, fechar a porta e gritar por algum tempo. Quando acabávamos, podíamos abrir a porta e sair. Gritar na sala de TV ou no corredor era "atuar", coisa malvista. Quanto a gritar  na solitária, tudo bem.
Também podíamos "solicitar" que nos trancassem na solitária. Poucas faziam tal solicitação. Também era preciso " solicitar" para sair. Uma enfermeira espiava pela tela de galinheiro e decidia se você estava pronta pra sair. Um pouco como quem espia um bolo pelo vidro do forno.
Segundo as regras de etiqueta da solitária, qualquer pessoa podia juntar-se a você, desde que você não estivesse trancada. Uma das enfermeiras podia interromper sua gritaria para averiguar o seu motivo, ou outra maluca qualquer podia entrar e começar a gritar junto como você. Daí essa história de " solicitação". O preço da privacidade era a liberdade.
A verdadeira finalidade da solitária, contudo, era colocar as piradas de quarentena. Como grupo, a gente se mantinha num determinado nível de agitação e angústia. Aquela que passasse mais do que umas poucas hora acima desse nível ia para a solitária. Segundo as funcionárias,se não fizessem isso, cada uma de nós aumentaria o grau de sua loucura. Isso era relativo, como uma curva de graduação na atribuição de notas escolares.
A solitária funcionava. Uma dia ou uma noite ali dentro, sem ter o que fazer, e a maioria se acalmava. Se não se acalmasse, ia para a segurança máxima.
Nossas portas de fechadura dupla, nossa janela com tela de aço, nossa cozinha equipada com facas de plástico e fechada à chave, a não ser que uma enfermeira estivesse presente, as portas sem trinco do nossos banheiros: tudo isso era segurança média. A segurança máxima era um outro mundo.
 
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