terça-feira, 10 de abril de 2012

Meu suicídio

O suicídio é uma forma de assassinato ― assassinato premeditado. Não é algo que se faz da primeira vez que se pensa em fazer. A gente precisa se acostumar com a ideia. E precisa dos meios, da oportunidade, do motivo. Um suicídio bem-sucedido exige boa organização e cabeça fria, coisas geralmente incompatíveis com estado de espírito de quem quer se suicidar.
É importante cultivar um distanciamento. Uma forma de fazer isso é imaginar-se morta ou morrendo. Havendo uma janela, deve-se imaginar o próprio corpo caindo da janela. Havendo uma faca,deve-se imaginar essa faca penetrando na própria pele, Havendo um trem que já vai chegar, deve-se imaginar o próprio corpo esmagado sob suas rodas. Esses exercícios são essenciais para se atingir o distanciamento necessário.
O motivo é de superlativa importância. Sem um motivo forte, vai tudo por água abaixo.
Meus motivos eram fracos : um trabalho de História Americana que eu não queria fazer e a pergunta que eu me propusera meses antes: Por que não me matar? Morta, eu não teria que fazer o trabalho.Nem precisaria ficar ponderando aquela pergunta.
Essa ponderação me desgastava. Depois que a gente se faz uma pergunta dessas, ela não nos larga mais. Acho que muita gente se mata para por o fim ao dilema de se matar ou não.
Tudo que eu pensava ou fazia era imediatamente incorporado ao dilema. Fiz um comentário idiota ― por que não me mato? Perdi o ônibus ― melhor acabar com tudo. Até o que era bom entrava no jogo. Gostei desse filme ― talvez eu não devesse me matar.
Na verdade, eu só queria matar uma parte de mim : a parte que queria se matar, que me arrastava para o dilema do suicídio e transformava cada janela, cada utensílio de cozinha e casa estação de metrô no ensaio de uma tragédia.
Só descobrir tudo isso, porém, depois de engolir cinquenta aspirinas.
Eu tinha um namorado chamado Johnny, que escrevia poemas de amor para mim. Bons poemas. Liguei para ele, disse que ia me matar, deixei o fone fora do gancho, tomei as minhas cinquenta aspirinas e percebi o meu erro. Aí, saí para comprar leite, coisa que minha mãe me pedira para fazer, antes das aspirinas.
Johnny chamou a polícia, que veio até minha casa e contou para a minha mãe o que eu havia feito. Ela apareceu no supermercado da Av. Massachussetts no instante em que eu ia desmaiar em cima do balcão do açougue.
No trajeto de cinco quarteirões até o supermercado, a humilhação e arrependimento me invadiram. Eu havia cometido um erro e agora ia morrer por causa dele. Talvez até merecesse morrer por isso. Comecei a prantear minha morte. Por um instante, senti compaixão por mim e por toda  a infelicidade que eu continha. Tudo começou a se turvar e a rodopiar. Quando cheguei ao mercado, o mundo estava reduzido a um túnel estreito e latejante. Eu havia perdido a visão periférica, meus ouvidos zumbiam, meu pulso latejava. As costelas e as bistecas ensanguentadas, espremidas nos invólucros de plástico, foram as últimas coisas que eu consegui enxergar com nitidez.
A lavagem estomacal me fez recuperar os sentidos. Um tudo comprido foi enfiado no meu nariz ,até o fundo da minha garganta. Parecia  que queriam me sufocar. Depois,começaram a bombear. Era como tirar sangue em grande quantidade ― a sucção, a sensação de tecidos que ruíam e se tocavam de um jeito diferente do normal, a náusea de sentir que arrancavam tudo o que tinha lá dentro. Foi um ótimo desestímulo. Decidi que da próxima vez, com certeza, eu não ia tomar aspirina.
No entanto, quando terminaram, perguntei-me se haveria uma próxima vez. Eu me sentia bem.Não estava morta, mas alguma coisa havia morrido. Talvez eu tivesse alcançado o meu estanho objetivo de suicídio parcial. Senti uma leveza, uma animação que havia anos que não sentia.
Essa despreocupação durou meses. Fiz alguns trabalhos, no colégio. Parei de sair com Johnny e passei a sair com o meu professor de Inglês, que escrevia poemas melhores, embora não fossem pra mim. Fui com ele para Nova York; ele me levou ao Museu Frick para ver os Vermeer.
A única coisa esquisita foi que de repente me tornei vegetariana.
Devido ao meu desmaio em cima de um balcão de açougue, passei a associar carne com suicídio. Mas sabia que havia mais coisas por trás disso.
A carne estava machucada, sangrando, espremida numa embalagem apertada. E por mais que tivesse passado seis meses livres desse pensamento, eu também.
 
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