segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sorvete


Era um dia  de primavera, desses que trazem esperança : cheio de brisas suaves e delicados aromas de terra aquecida. Tempo de suicídio. Daisy se matara uma semana antes. Na certa eles achavam que precisávamos de uma distração. Sem Daisy, a proporção da equipe de funcionários/pacientes era mais alta do que o habitual: cinco pacientes e três enfermeiras.
Descendo a colina, passando pelas magnólias que já perdiam suas flores carnudas, seu tom rosado amarelando  e apodrecendo nas bordas; passando pelos narcisos estorricados feito papel; passando pelos loureiros pegajosos, que tanto podem coroar como envenenar você. Naquele dia, na rua, as enfermeiras estavam menos nervosas, talvez porque a febre da primavera as tornasse descuidadas ou porque — quem sabe? — aquele coeficiente funcionárias/pacientes acabasse sendo mais cômodo.
O assoalho da soverteria me pertubava. Era de cerâmica e formava quadrados pretos e brancos, como um tabuleiro de xadrez, maior do que o tabuleiro do supermercado. Se eu olhasse apenas para um dos quadrados brancos, tudo bem;  mas era dificil abstrair os quadrados pretos que cercavam os quadrados brancos. O contraste  me incomodava. Sempre me sentia desconfortável na sorveteria. O chão queria dizer Sim, Não, Isto, Aquilo, Em cima, Embaixo, Dia, Noite... todas aquelas indecisões e opostos que, se na vida já são ruins, ficam ainda piores assim, explicitados no chão.
Havia um garoto novo servindo o sorvete de casquinhas, e nos aproximamos dele em bloco.
— Queremos oito casquinhas — disse uma das enfermeiras.
— Tudo bem — disse ele. Tinha uma cara afável, cheia de espinhas.
Demoramos um bocado de tempo escolhendo os sabores. Sempre demorávamos
— Paçoca de mente — disse a namorada do marciano.
— O nome é menta — disse Georgina
— Piroca de só menta.
— Francamente — disse Georgina, engatando a marcha para um protesto.
— Xoxota de menta.
Por conta disso, a namorada do marciano foi premiada com um beliscão da enfermeira.
Ninguém mais quis menta; o preferido foi o chocolates. Havia um novo sabor de primavera, pêssego em calda. Foi a minha escolha.
— Você quer com nozes * ? — perguntou o garoto novo.
Todas se entreolharam: devíamos pronunciar aquela palavra? As enfermeiras prenderam a respiração. Lá fora, os passarinhos cantavam.
— Acho que não nos fazem falta — disse Georgina.


*Em inglês nuts, que também é uma expressão de gíria para " maluco" ( N.da T)
 
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