segunda-feira, 30 de abril de 2012

Prelúdio para um sorvete


O hospital ficava numa colina na periferia da cidade, igual aos hospitais que vemos em filmes sobre loucos. Nosso hospital era famoso e abrigara muitos grandes poetas e cantores. Seria especializado em poetas e cantores? Ou os poetas e cantores é que especializaram em loucura?
O mais famoso de todos os ex-pacientes era Ray Charles. Vivíamos esperando que ele voltasse e fizesse serenatas da janela do pavilhão de recuperação de drogados. Ele nunca voltou.
Mas tínhamos a família Taylor: Kate e Livingston estavam lá, embora James tivesse sido promovido a outro hospital antes da minha chegada. Na falta de Ray Charles, seus blues com sotaque da Carolina do Norte eram o bastante para nos entristecer. Os tristes precisam ouvir o som da sua tristeza.
Robert Lowell também passou por ali durante a minha estada. Sylvia Plath chegara e partira.
Por que será que a métrica, a cadência e o ritmo produzem loucura em que os produz?
Os jardins eram grandes e de belo paisagismo. Também eram intocados, já que quase nunca nos deixam passear por eles. De vez em quando, porém, como prêmio especial, éramos conduzidas através deles para ir tomar sorvete.
Nosso grupo tinha uma estrutura anatômica : um núcleo de malucas cercado por enfermeiras-elétrons nervosas , ativadas para nos proteger. Ou para proteger os moradores de Belmont de nós.
Os moradores eram abastados. A maioria trabalhava como engenheiro ou tecnocrata alo longo da Auto-estrada da Tecnologia, a Estrada 128. Outro tipo importante de morador de Belmont era o membro da Jonh Birch Society.  A Jonh Birch Society estava à mesma distância a oeste que o hospital estava a  leste de Belmont. No nosso modo de ver, as duas instituições eram variações de uma mesma coisa; os membros da Jonh Birch com certeza não compartilhavam o nosso ponto de vista. Juntos, porém, nós e eles mantínhamos Belmont sob cerco. Os engenheiros sabiam disso e tinham cuidado de não olhar acintosamente para nós quando entrávamos na sorveteria.
Dizer que nos deslocávamos com um grupo de enfermeiras não explica completamente  nossa situação. Um complexo de sistema de " privilégios" determinava quantas enfermeiras acompanhariam cada paciente, e se um paciente podia deixar o recinto do hospital.
Esses privilégios começavam com nenhum privilégio : confinada ao pavilhão. Era a situação habitual de Lisa. Às vezes ela dava um pulinho para o degrau seguinte, duas para uma. Isto quer dizer que ela podia deixar o pavilhão  acompanhada de duas enfermeiras,mas só para ir no refeitório ou para terapia ocupacional. Mesmo com nossa elevada proporção enfermeira/paciente, duas para uma geralmente significava confinada ao pavilhão.  Dificilmente havia duas enfermeiras disponíveis para segurar Lisa pelos cotovelos e arrastá-la para jantar. Em seguida, vinham as uma para uma: uma enfermeira e uma paciente unidas como gêmeas siamesas.Algumas pacientes eram do tipo uma para uma dentro do pavilhão, o que equivalia a ter um pajem ou um camareiro. Ou uma consciência pesada. Dependia da enfermeira. Uma enfermeira nojenta numa situação uma para uma podia ser um problema; geralmente, tratava-se de um posto a longo prazo, e a enfermeira poderia chegar a compreender seu paciente.
As graduações eram bizantinas. Uma para duas ( uma enfermeira e dois pacientes), depois grupo ( três ou quatro pacientes e uma enfermeira). Quem se comportasse bem num grupo ganhava uma coisa chamada "privilégios de lugar de destino". Isso queria dizer telefonar para a enfermeira-chefe tão logo se chegasse ao lugar de destino, informando da sua chegada. Também era preciso telefonar antes de voltar, e aí ela calculava  o tempo e a distância, para o caso de você preferir fugir. Em seguida, vinha a escolta mútua, que consistia em duas pacientes relativamente não-loucas que podiam se deslocar juntas. E o supra-sumo, a liberação interna, significava que você podia andar sozinha por todo o hospital.
Uma vez percorrida, dentro do hospital, toda a via crúcis , o circuito se repetia no mundo exterior. Os que estavam no nível de escolta mútua ou mesmo de liberação interna provavelmente ainda teriam que sair em grupo.
Portanto, quando íamos à Bailey's da Waverley Square com nosso séquito de enfermeiras, a disposição dos átomos em nossa molécula era mais complexa do que devia parecer aos olhos das mulheres dos engenheiros que tomavam cafezinho no balcão e educadamente fingiam não olhar para nós.
Lisa não podia nos acompanhar. Depois de sua terceira fuga, nunca conseguiu passar do uma para uma. Polly era uma para uma, mas o motivo disso era fazer com que se sentisse segura, e não cercada, e ela vinha sempre conosco. Georgina e eu estávamos num grupo mas, como não havia mais ninguém no grupo, na prática éramos tão malucas quanto Cynthia e a namorado do marciano.  Não éramos e, de nossa parte, havia um certo ressentimento. Daisy ficava no topo da pirâmide: cidade e hospital liberados. Ninguém entendia por quê.
Seis pacientes, três enfermeiras.
Na caminhada de dez ou quinze minutos colina abaixo, deixávamos para trás as roseiras e as árvores senhoriais do nosso belo hospital. Quanto mais nos afastávamos de nosso pavilhão, mais aumentava o nervosismo das enfermeiras. Quando chegávamos à rua, calavam-se, fechavam seu cerco sobre nós e adotavam o Olhar de Quem Não Quer Nada — uma expressão onde se lia " não sou uma enfermeira escoltando seis lunáticas até a sorveteria".
Mas é o que elas eram; e nós, por sermos as seis lunáticas, nos comportávamos como tais.
Não que qualquer uma de nós fizesse algo diferente do habitual. Continuávamos a agir como já agíamos no pavilhão. Resmungos, rosnados, choros. Daisy cutucava as pessoas. Georgina alegava não ser tão maluca quanto as outras duas.
— Vamos parar com essa atuação — dizia uma das enfermeiras.
Para fazer com que nos calássemos, eram bem capazes de nos beliscar ou de nos dar um cutucada à la Daisy, um beliscão de enfermeira. Não as censurávamos por isso, da mesma forma que elas não nos censuravam por sermos o que éramos. Tudo que tínhamos era isso — a verdade —, e as enfermeiras sabiam.
 
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