terça-feira, 10 de abril de 2012

Se você morasse aqui, já estaria em casa



Daisy era um evento sazonal. Todo ano, ela chegava antes do feriado de Ação de Graças e ficava até depois do Natal. Houve um ou outro ano em que também veio no seu aniversário, em maio.
Sempre conseguia um quarto só pra ela.
― Alguém quer dividir um quarto? ― perguntou a enfermeira-chefe certa manhã de novembro, durante nossa reunião semanal.
Foi um momento de tensão. Georgina e eu, que já dividíamos um quarto, nos deliciamos com a confusão.
― Eu! Eu! ― disse uma, levantando a mão. Era a namorado de um marciano e , além disso, tinha um pênis pequeninho, que adorava exibir. Ninguém nunca quis dividir o quarto com ela.
― Eu dividiria, se alguém quisesse, mas é claro que ninguém vai querer, nem eu vou obrigar
ninguém a querer ― Essa era Cynthia, que tornara a falar depois de seis meses em estado de choque.
― Eu divido com você, Cynthia ― acudiu Polly.
Mas isso não resolvia o problema, pois Polly já ocupava um quarto duplo. Sua companheira era uma anoréxica nova chamada Janet, que precisava ser alimentada à força toda vez que seu peso descia abaixo de trinta e quatro quilos e meio ― disse Lisa em voz alta, inclinando-se para mim. ― Vão ter que entubá-la no fim de semana.
― Trinta e cinco e meia é o meu peso ideal ― disse Janet. Mas dissera o mesmo de trita e oito e trita e sete quilos e, consequentemente, ninguém tampouco queria dividir o quarto com ela.
No final, juntaram duas catatônicas, e o quarto de Daisy ficou pronto para sua chegada em quinze de novembro.
Daisy tinha duas paixões : laxantes e frango. Toda manhã, ia para a sala das enfermeiras e batucava o balcão com os dedos pálidos e manchados de nicotina, pedindo impaciente um laxante.
― Quero meu Colance ― sibilava. ― Quero meu Ex-Lax.
Se houvesse alguém ao seu lado, Daisy lhe dava uma cotovelada nas costelas ou pisava no seu pé. Detestava que se aproximassem dela.
Duas vezes por semana, seu pai, cujo o rosto lembrava uma batata, trazia um frango inteiro, que sua mãe assara e embrulhara em papel-alumínio. Daisy colocava o frango no colo e afagava por cima da embalagem, correndo os olhos pela sala, louca para que o pai partisse e a deixasse dar cabo do bicho. Mas o queria ficar o máximo possível. pois era apaixonado pela filha.
― Não consegue acreditar que foi ele quem a gerou ― explicou Lisa. ― Quer trepar com ela pra se certificar de que ela existe.
― Mas ela fede ― protestou Polly. De fato, Daisy cheirava a galinha e merda.
― Ela nem sempre fedeu ― disse Lisa.
Para mim, Lisa tinha razão. Eu já percebera que Daisy era sexy. Apesar de feder, amarrar a cara, sibilar e desferir cotoveladas, tinha uma centelha que nos faltava. Costumava usar shorts e camisetas cavadas para exibir suas pernas e braços alvos e rijos; de manhã, quando ia buscar seu laxante, saía rebolando pelo corredor, descrevendo semicírculos sestrosos com a bunda. 
Quem a seguia pelo corredor. aos arrulhos, era o namorado do marciano, que também  estava apaixonada por ela.
― Você não quer ver meu pênis?
Ao que Daisy respondia, num sibilo : ― Estou cagando pro seu pênis.
Ninguém jamais entrara no quarto de Daisy. Lisa decidiu entrar. Tinha um plano.
― Estou com prisão de ventre, cara ― passou três dias dizendo. ― Nossa!
No quarto dia, conseguiu um pouco de Ex-Lax com a enfermeira-chefe.
― Não funcionou ― informou na mão seguinte. ― Não tem nada mais forte?
― Que tal óleo de rícino? ― perguntou a enfermeira-chefe, assoberbada de trabalho.
― Isto aqui é ninho de víboras fascistas ― disse Lisa. ― Me dá uma dose dupla de Ex-Lax.
Agora, que tinha seis Ex-Lax, estava pronta para negociar. Postou-se diante da porta de Daisy.
― Ei Daisy ― chamou. ― Ei Daisy! E chutou a porta.
― Vai se foder ― disse Daisy.
― Ei Daisy.
Daisy sibilou.
Lisa encostou-se na porta e fechou.
― Tenho um negócio aqui e você vai querer ― disse.
― Que merda. ― disse Daisy. E abriu a porta.
Lá no fim do corredor, Georgina e eu espiávamos. Quando Daisy abriu a porta, espichamos o pescoço,mas, como o quarto estava escuro, não conseguimos enxergar nada. Quado a porta se fechou atrás de Lisa, um cheiro estranho, adocicado, vazou fugazmente para o corredor.
Lisa demorou muito para sair.  Desistindo de esperar, fomos ao refeitório almoçar.
Durante o noticiário da noite, Lisa fez seu relatório. Postada diante da TV, falou tão alto que abafou a voz de Walter Cronkite.
― O quanto da Daisy está abarrotado de frangos ― disse. ― É lá que ela come os frangos. Ela me mostrou o seu método especial. Tira toda a carne, porque gosta de guardar a carcaça inteira. Até mesmo as asas... ela retira toda a carne das asas. Depois coloca a carcaça no chão, junto da anterior. Já tem umas novas. Diz que quando tiver quatorze, é hora de ir embora.
― Ela lhe ofereceu uma? ― perguntei.
― E eu lá ia querer aquele frango nojento?
― Por que é que ela faz isso? ― perguntou Georgina.
― Dá um tempo, cara ― disse Lisa. ― Não posso saber tudo.
― E os laxantes? ― quis saber Polly.
― Ela precisa. Precisa mesmo, por causa de tanto frango.
― Tem mais coisa do que parece por trás disso tudo ― disse Georgina.
― Escuta aqui! Quem conseguiu entrar fui eu ― disse Lisa.
Depois disso, a discussão degenerou rapidamente.
Ainda naquela semana tivemos novidades sobre Daisy. Seu pai ia lhe dar um apartamento como presente de Natal. " Um ninho de amor", nas palavras de Lisa.
Daisy estava cheia de si e passava mais tempo fora do quarto, na esperança de que alguém lhe perguntasse sobre o apartamento. Georgina fez sua vontade.
― De que tamanho é o apartamento, Daisy?
― Sala-e-quarto. Sala em L, galinha separada.
― Você quis dizer " cozinha separada", não é?
― Foi o que eu disse, sua imbecil.
― Onde fica o apartamento, Daisy?
― Perto do Hospital Geral.
― Ou seja, no caminho  do aeroporto?
― Perto do Hospital Geral.
Daisy não queria reconhecer que era no caminho do aeroporto.
― E do que é que você mais gosta nele?
Daisy fechou os olhos e fez uma pausa, saboreando a parte de que gostava mais.
― Da placa.
― Que placa?
― A placa onde está escrito " Se você morasse aqui, já estaria em casa." ― Daisy brandiu o punho,empolgada.― Entendeu? Todo dia as pessoas vão passar por ali e ler a placa, e aí vão pensar " É mesmo, se eu morasse aqui, já estaria em casa". Mas eu é que estarei em casa. Filhos da puta.
Naquele ano, Daisy foi embora antes, para passar o Natal em seu apartamento.
― Ela vai voltar ― disse Lisa. Mas pela primeira vez estava enganada.
Certa tarde de maio fomos convocadas para uma reunião especial.
― Meninas ― disse a enfermeira-chefe. ― Tenho uma notícia triste. Todo mundo se inclinou para a frente. ―Daisy se suicidou ontem.
― Ela estava no seu apartamento? ― perguntou Georgina.
― Ela deu um tiro nela mesma? ― perguntou Polly.
― Quem é Daisy? Eu conheço essa Daisy? ― perguntou a namorado do marciano.
― Ela deixou algum bilhete? ― perguntei.
― Os detalhes não interessam ― disse a enfermeira-chefe.
― Era o aniversário dela, não era? ― perguntou Lisa. A enfermeira-chefe fez que sim com a cabeça.
Fizemos um minuto de silêncio por Daisy.

 
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