terça-feira, 10 de abril de 2012

Política

No nosso mundo paralelo aconteciam coisas que ainda não tinham acontecido no mundo de onde havíamos saído. Quando por fim elas aconteciam lá fora, era como se já soubéssemos, pois alguma versão daquilo já se desenrolara diante de nós. Éramos como uma platéia de província, uma New Haven em oposição à Nova York do mundo real : lugar onde a História podia fazer pré-estréia do seu próximo espetáculo.
Por exemplo: a história de Brad, o namorado de Georgina , e do açúcar.
Haviam se conhecido no refeitório. Brad era moreno e bonito, de um jeito insosso e tipicamente americano. O que o tornava irresistível era a sua raiva. Tinha raiva de quase tudo, sua fúria chegava a fulgurar. Georgina explicou que seu problema era com o pai.
— O pai dele é espião, o Brad tem raiva porque nunca vai conseguir ser tão duro quanto o pai. 
Eu estava mais interessada no pai do que no problema de Brad.
— Espião nosso? — perguntei.
— É claro — disse Georgina, e mais não quis dizer. 
Brad e Georgina ficavam sentados no chão do nosso quarto, cochichando. Esperavam que eu os deixasse a sós e era isso que eu geralmente fazia. Um dia, porém, resolvi fica e xeretar sobre o pai de Brad.
Brad adorava falar no pai. — Ele mora em Miami, para poder viajar para Cuba. Ele invadiu  Cuba. Matou dúzias de pessoas com as próprias mãos nuas. E sabe quem matou o presidente.
— Foi ele quem matou o presidente? — perguntei.
— Acho que não — disse Brad.
O sobrenome de Brad era Barker.
Devo admitir que não acreditei numa só palavra do que Brad disse. Afinal de contas, tratava-se de um louco de dezesseis anos, tão violento que só dois atendentes fortes conseguiam segurá-lo. Às vezes passava uma semana trancafiado no pavilhão sem que Georgina pudesse vê-lo. Depois se acalmava e retomava suas visitas ao chão do nosso quarto.
O pai de Brad tinha dois amigos que causavam uma impressão particularmente forte no filho : Liddy e Hunt.
— Esses caras são capazes de qualquer coisas! — dizia Brad.
Dizia isso com frequência, como se aquilo o preocupasse.
Georgina não gostava que eu incomodasse Brad fazendo perguntas sobre o seu pai; quando eu me sentava no chão, ao lado deles, ela não tomava conhecimento de mim. Mas eu não resistia.
— O que por exemplo? — perguntei a ele. — Que tipo de coisa eles são capazes de fazer?
— Isso eu não posso revelar — respondeu Brad.
Pouco depois disso, ele entrou em uma fase violenta que durou várias semanas.
Georgina não tinha o que fazer sem as visitas de Brad. Como eu me sentia em parte responsável pela ausência dele, sugeri várias distrações.
— Vamos decorar o quarto — sugeri. — Vamos jogar mexe-mexe. Ou então : — Vamos fazer uma comida.
A ideia de cozinhar alguma coisa motivou Georgina.
— Vamos preparar caramelos — ela disse.
Para mim, era uma surpresa que apenas duas pessoas numa cozinha conseguissem fazer caramelos. Sempre pensei que fossem um artigo produzido em massa, como os automóveis, que exigiam uma maquinaria complicada.
Segundo Georgina, porém, só precisaríamos de uma frigideira e açúcar.
— Assim que ficar no ponto, a gente faz bolinhas e as despeja sobre papel encerado — ela explicou.
As enfermeiras acharam graça em nos ver cozinhando.
— Se preparando para quando você e Brad se casarem? — perguntou uma delas.
— Não acho que Brad seja do tipo casadoiro — disse Georgina.
Até mesmo quem nunca fez caramelos sabe como o açúcar precisa estar quente para ficar no ponto. Pois estava quente assim quando a frigideira escorregou e eu entornei metade da clada na mão da Georgina, que segurava o papel encerado esticado.
Desandei a gritar, mas Georgina não soltou um pio. As enfermeiras acorreram com o gelo, unguentos e curativos, enquanto eu não parava de gritar e Georgina não fazia nada; ficou ali parada, a mão caramelada estendida à sua frente.
Não me lembro se foi E. Howard Hunt ou G. Gordon Liddy quem, durante as audiências de Watergate, disse que toda noite colocava a mão sobre a chama de uma vela até arder, para se certificar de que aguentaria ser torturado.
De qualquer modo, nós já sabíamos de tudo : a Baía dos Porcos, a pele chamuscada, os matadores de mãos nuas capazes de qualquer coisa, Assistimos à pré-estréia — Brad, Georgina e eu, bem como platéia de enfermeiras cuja inspeção dizia mais ou menos o seguinte : "A paciente não esboçou qualquer reação após o acidente"; " O paciente continua a fantasiar que o pai é um agente da CIA com amigos perigosos."



 
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