segunda-feira, 9 de abril de 2012

Liberdade



Lisa tornara a fugir. Ficamos tristes ,pois ela nos dava ânimo. Era engraçada. Lisa! Ainda hoje, não consigo pensar nela sem sorrir.
O pior é que sempre a pegavam e a traziam de volta, toda suja, o olhar ensandecido de quem enxergou a liberdade. Ela amaldiçoava seus captores, e nem mesmo as veteranas mais irredutíveis  conseguiam conter o riso diante dos xingamentos que invetava.
— Boceta de queijo!
Ou então, outro do seus favoritos:
— Seu morcego esquizofrênico!
Geralmente encontravam-na antes do fim do dia. A pé e sem dinheiro, ela não conseguia ir muito longe. Dessa vez, porém, parecia ter dado sorte. No terceiro dia, ouvi alguém na sala das enfermeiras anunciar pelo telefone um aviso de intensificação de busca.
Reconhecer Lisa na certa não seria difícil. Lisa raramente comia e nunca dormia, de forma que era magra e amarelada, como costumam ser as pessoas que não comem, e tinha bolsas enormes sob os olhos. Prendia is cabelos grossos, escuros e opacos com fivela prateada. Seus dedos eram os mais longos que eu já vi.
Daquela vez, quando a trouxeram de volta, estavam quase tão furiosos quanto ela. Dois homens parrudos a seguravam pelos braços e um terceiro a segurava pelos cabelos, puxando-os, enquanto Lisa arregalava os olhos. Todo mundo se calou, inclusive Lisa. Enquanto nós olhávamos, ela foi levada para o fim do corredor.
 Víamos muitas coisas.
Viámos Cynthia voltar em pratos do eletrochoque, uma vez por semana. Víamos Polly tremendo de frio, enrolada em lençóis umedecidos com água gelada. Mas uma das piores coisas que vimos foi Lisa saindo da solitária, dois dias depois.
Em primeiro lugar, suas unhas estavam aparadas até o sabugo. Ela tinha umas unhas muito bonitas., das quais sempre cuidava, pintava, lixava, dava forma. Alegaram que suas unhas eram "objetos cortantes".
Além disso, haviam confiscado o seu cinto. Lisa sempre usava um cinto barato,de miçangas, desses que os índios das reservas costumam a fabricar. Era um cinto verde, com triângulos vermelhos, e pertencera ao seu irmão Jonas, o único membro da família que ainda mantinha contato com ela. A mãe e o pai não a visitavam por que era um sociopata ― pelo menos, era o que Lisa dizia. Confiscaram o cinto para que não se enforcasse com ele.
Não compreendiam que Lisa jamais se enforcaria.
Lisa foi solta da solitária e recebeu o cinto de volta. Suas unhas tornaram a crescer. Mas Lisa não voltou. Ficava sentada, assistindo à TV com as mais irrecuperáveis.
Lisa nunca fora de assistir à televisão. Para as que assistiam, só mostrava desprezo. "É tudo uma bosta!" , berrava, enfiando a cabeça pela porta da sala de TV. "Vocês já parecem robôs. Assim vão é piorar." Às vezes, desligava a TV ou se plantava diante da tela, desafiando alguém a ligá-la de novo. Mas a platéia era quase toda formada por catatônicas e depressivas que não estavam afim de se mexer. Passados cinco minutos, ou seja, mais ou menos o tempo que ela conseguia ficar parada, Lisa ia fazer outra coisa; e , quando a encarregada da ronda se aproximava, tornava a desligar o aparelho.
Como Lisa não dormia havia dois anos, as enfermeiras desistiram de mandá-la para a cama. Em vez disso, tinha uma cadeira só sua no corredor, como a da equipe da noite, onde ficava sentada, fazendo as unhas. Sabia preparar um chocolate maravilhoso e , às três da madrugada, preparava um para a equipe da noite e para quem mais estivesse de pé.
Ficava mais calma, de noite.
Certa vez eu lhe perguntei:
― Lisa, como é que de noite você não fica de um lado para o outro, nem grita?
― Também preciso descansar ― ela respondeu. ― Só porque não durmo, não quer dizer que eu não descanse.
Lisa sempre sabia o que lhe fazia falta.
― Preciso tirar férias deste lugar ― dizia às vezes, e então fugia. Toda vez que voltava, nós lhe perguntávamos como estava o mundo lá fora.
― É um mundo ruim. ― ela dizia. Geralmente, ela ficava bem contente por estar de volta. ― Lá fora não tem ninguém para cuidar da gente.
Agora, não dizia uma palavra. Ficava o tempo todo na sala de televisão. Assistia aos programas religiosos, olhava os gabaritos de teste, passava horas vendo programas de entrevistas da alta madrugada e noticiários matutinos. No corredor, sua cadeira permanecia desocupada. Ninguém ganhava chocolate.
― Vocês estão dando algum remédio para a Lisa? ― perguntei à encarregada da ronda.
― Você sabe que não podemos comentar a medicação com os pacientes.
Perguntei à enfermeira-chefe, que eu conhecia do tempo em que ela ainda não estava no cargo.
Mas ela reagiu como se sempre estivesse sido enfermeira-chefe.
― Não podemos falar sobre a medicação...e você sabe disso.
― Para que perguntar? ― disse Georgina. ― Ela está completamente dopada. É óbvio que estão dando algum remédio para ela.
Cynthia achava que não.
― Ela ainda está andando direito ― observou.
― Eu não ― disse Polly. De fato, não estava. Caminhava com os braços projetados diante dela, suas mãos vermelhas e brancas penduradas nos punhos, os pés arrastando no chão. Os lençóis gelados não funcionavam; ela continuava gritando a noite inteira até lhe darem algo.
― Demora um pouco ― eu disse. ― Você andava direito quando eles começaram.
― Agora não ando ― disse Polly, olhando para as próprias mãos.
Perguntei a Lisa se eles a estavam medicando, mas ela não quis olhar pra mim.
E assim transcorreram uns dois meses, com Lisa e as catatônicas na sala de televisão, Polly andando como um cadáver motorizado, Cynthia chorando depois dos eletrochoques ( "Não estou triste", ela me explicou, "mas não consigo prender o choro"), eu e Georgina na nossa suíte dupla. Éramos consideradas as mais saudáveis.
Com a chegada da primavera, Lisa começou a passar um pouco mais de tempo fora da sala de televisão. No banheiro, mais precisamente ― não deixava de ser uma mudança.
― O que é que fica fazendo no banheiro? ― perguntei à encarregada da ronda, uma funcionária nova.
― E eu lá tenho obrigação de ficar abrindo a porta dos banheiros?
Fiz o que com frequência fazíamos com gente nova.
― Qualquer hora dessas alguém se enforca lá dentro! Onde é que você pensa que está, afinal de contas? Num colégio interno?
Depois, encarei-a bem de perto, quase encostando meu rosto no dela. Não gostavam disso, de contato físico com a gente.
Reparei que Lisa entrava cada vez num banheiro diferente. Havia quatro banheiros, e ela percorria todos diariamente. Seu aspecto não era nada bo,. Seu cinto estava frouxo e ela parecia mais amarela do que o normal.
― Vai ver que está com disenteria ― comentei com Georgina. Mas Georgina achava que ela estava era dopada.
Certa manhã de maio, enquanto tomávamos o café, ouvimos a porta bater. Lisa entrou na cozinha.
― A televisão fica para depois ― disse.
Serviu-se de uma xícara grande de café, como costumava fazer antes todas as manhãs, e sentou-se à mesa. Sorriu para nós, que sorrimos para ela.
― Esperem só ― disse.
Ouviu-se um corre-corre de passos e vozes que diziam coisas como " Que diabos..." , " Como é que pode..." A enfermeira-chefe entrou na cozinha.
― Foi você quem fez isso ― disse para Lisa.
Fomos ver o que era.
Lisa tinha embrulhado todos os móveis ― alguns deles ocupados peças catatônicas ― , bem como a TV e o sistema de sprinklers do teto, como papel higiênico, metros e mais metros de papel higiênico esvoaçando, pendurados, embolados e enrolados em tudo e por toda parte. Foi maravilhoso.
― Não estava dopada ― falei para Georgina. ― Estava era conspirando.
O verão foi agradável. Lisa contou um monte de histórias sobre as coisas que havia feito nos seus três dias de liberdade.
 
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