sexta-feira, 6 de abril de 2012

Fogo



Uma de nós ateou fogo em si mesma. Com gasolina.Na época, ela não tinha idade suficiente para dirigir. Minha dúvida era de que jeito ela teria conseguido a gasolina. Teria caminhado até o posto de gasolina do bairro e dito que o carro de seu pai ficara sem combustível? Ela não conseguia olhar para ela sem pensar nisso.
A gasolina acumulara-se em suas clavículas, creio, formando poças junto aos ombros, pois as cicatrizes piores eram as que exibia no pescoço e nas faces. Formavam uns cordões grossos, alternadamente cor-de-rosa e brancos, em listras que lhe subiam pelo pescoço. Eram tão duras e largas que ela não conseguia virar a cabeça e tinha que girar todo o tronco para enxergar quem estava ao seu lado.
As cicatrizes não têm personalidade. Não são como a pele da gente: não mostram a idade ou alguma doença , a palidez ou bronzeado. Não têm poros nem pelos, nem rugas. São uma espécie de fronha, que protege e esconde o que houver por baixo. Por isso as criamos. Porque temos algo a esconder.
Chama-se Polly. Um nome que na certa lhe parecera ridículo nos dias ou meses em que planejara atear fogo a si mesma, mas que se adequava com perfeição à sua vida de sobrevivente de fronha. Nunca estava triste. Era gentil e confortava os tristes. Nunca se queixava e sempre tinha tempo para ouvir as queixas dos outros. Não havia defeitos dentro daquele invólucro rosa e branco, justo e impermeável. O que quer que a tivesse motivado, murmurando-lhe "Morra!" ao pé do ouvindo outrora perfeito e hoje desfigurado, ela havia imolado.
Por que fizera aquilo? Ninguém sabia. Ninguém se atrevia a perguntar. Afinal... que coragem! Quem teria coragem de se queimar daquele jeito? Vinte aspirinas, um pequeno talho acompanhando as veias do braço, até mesmo — quem sabe? — meia hora de horror no alto de um telhado : todos nós passamos por algo assim. E por outras coisas um pouco mais perigosas, como enfiar um revólver frio e oleoso, dedo pousado no gatilho, descobrimos que há um mundo inteiro entre esse momento e o momento tão planejado, o momento de puxar o gatilho. E é esse mundo que nos derrota. Guardamos o revólver de volta na gaveta. Temos que descobrir outro jeito.
Com teria sido para ela aquele momento, o momento de riscar o fósforo? Será que ela havia experimentado telhados, revólveres e aspirinas? Ou aquilo teria sido só uma inspiração?
Uma vez tive uma inspiração dessas. Acordei de manhã sabendo que naquele dia tinha que engolir cinquenta aspirinas. Era a minha tarefa, a minha incumbência para aquele dia. Enfileirei-as na escrivaninha e fui tomando uma por uma contando. Ma isso não é igual ao que ela fez. Eu poderia ter parado na décima, na trigésima. Como poderia ter feito o que de fato fiz, ou seja, ter ido para rua e desmaiado. Cinquenta aspirinas são um bocado de aspirinas, mas ir para a rua é desmaiar é a mesma coisa que guardar o revólver de volta na gaveta.
Ela riscou o fósforo.
Onde? Na garagem de sua casa, para não atear fogo em outras coisas? No meio de um descampado? Na quadra da escola? Numa piscina vazia?
Alguém a encontrou, mas isso demorou um pouco.
Quem beijaria uma pessoa como aquelas, uma pessoa sem pele?
A idéia lhe ocorrera antes dos dezoito anos. Ela estava conosco fazia um ano. Enquanto as outras esbravejam e gritavam, se contorciam e choravam, Polly olhava e sorria. Sentava-se ao lado das que estavam assustadas, e sua presença acalmava. Seu sorriso não tinha maldade, era cheio de compreensão. A vida era um inferno, ela sabia. Mas seu sorriso deixava entrever que ela queimara tudo isso dentro dela. Seu sorriso tinha uma ponta de superioridade: nós não teríamos tido aquela coragem de nos queimar por dentro; e isso ela também compreendia. Cada pessoa é uma pessoa. Cada um faz o que é possível fazer.
Certa manhã, havia alguém chorando, mas as manhãs eram mesmo barulhentas: brigas por causa da hora de acordar, queixa sobre pesadelos. Polly era uma presença tão discreta, tão quieta, que não percebemos sua ausência no café da manhã. Depois do café, continuamos ouvindo o choro.
— Quem está chorando?
Ninguém sabia.
E na hora do almoço, ainda se ouvia o choro.
— É a Polly — disse Lisa, que sabia de tudo.
— Por quê?
Mas isso nem Lisa sabia.
À noitinha o choro se transformou em gritos. O entardecer é uma hora perigosa. Primeira ela gritava " Aaaah!" e " Iiiiiih!" Depois, começou a gritar palavras.
— Meu rosto!, Meu rosto! Meu rosto!
Dava para ouvir outras vozes tentando silenciá-la, murmurando palavras reconfortantes; mas ela continuou a gritar aquelas duas palavras noite adentro.
— Bem faz tempo que eu não esperava uma coisa assim — disse Lisa.
Depois, acho todas percebemos o quanto havíamos sido tolas.
Algum dia poderíamos sair, mas ela estava aprisionada naquele corpo pra sempre.
 
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