quarta-feira, 25 de julho de 2012

Velocidade x viscosidade


A loucura assume duas variantes básicas: a lenta e a rápida.
Não estou falando do seu início ou da sua duração. Refiro-me à qualidade da loucura, ao problema cotidiano da piração.
Os nomes são muitos: depressão,mania,ansiedade, agitação.Não dizem grande coisa.
A qualidade predominante, na forma lenta, é a viscosidade.
A experiência se faz espessa. As percepções se adensam e embotam. O tempo se arrasta, pigando lentamente pelo filtro entupido de uma percepção adensada. A temperatura do corpo é baixa. O pulso é preguiçoso. O sistema imunológico fica meio adormecido. O organismo torna-se turvo e salobro. Até mesmo os reflexos se reduzem, como se a perna da gente não tivesse ânimo para sair do seu torpor e reagir com um chute à marteladinha no joelho.
A viscosidade se dá nas células. O mesmo acontece com a velocidade.
Ao contrário do coma celular da viscosidade, a velocidade investe cada plaqueta e fibra muscular com um pensamento próprio, um meio de conhecer e comentar o seu próprio comportamento. Há uma percepção exacerbada e, para lá da infinidade de percepções, uma infinidade de pensamentos sobre essas percepções e o próprio fato de se ter percepções. A digestão é capaz de matar! O que quero dizer é que a percepção ininterrupta dos processos digestivos pode matar pela exaustão. E a digestão é apenas uma digressão do pensamento, que é onde começa o verdadeiro problema.
Tomemos um pensamento qualquer... qualquer coisa, tanto faz. Estou cansada de ficar aqui sentada em frente à sala das enfermeiras: um pensamento perfeitamente racional. Eis o que velocidade fez com ele.
Primeiro, você analisa a frase: Estou cansada... pois bem, será cansaço realmente? Isso é o mesmo que sonolência? Você precisa conferir todas as partes do corpo para ver se está com sono e, enquanto faz isso, é bombardeada por imagens sobre sonolência, mais ou menos assim: cabeça caindo sobre o travesseiro, cabeça batendo no travesseiro, João Pestana e a Bela Adormecida esfregando os olhos sonolentos, um monstro marinho. Ih, um monstro marinho. Com sorte, você se esquiva do monstro marinho e se atém à sonolência. De volta ao travesseiro, a lembrança de ter tido cachumba aso cinco anos, a sensação da papada inchada sobre os travesseiros, a dor ao salivar...Pare. Vamos voltar à sonolência.
Mas a ideia da salivação é atraente demais e você parte em excursão pelo interior de sua boca. Já esteve ali antes e não achou bom. O problema é a língua : é só pensar na língua que ela se torna um estorvo. Por que será que é tão grande? Porque é áspera nas bordas? Será uma deficiência de vitamina? Seria possível arrancar a língua? Sem ela, a boca não ficaria mais confortável? Haveria mais um espaço no seu interior. A sua língua, agora, cada célula da sua língua,é imensa. Ela é um imenso objeto estranho dentro da sua boca.
Tentando diminuir o tamanho da sua língua, você se concentra nos seus componentes: a ponta é lisa; a parte de trás inchada; os lados são ásperos, como foi observado antes (deficiência de vitamínica); a raiz... um problema. A língua tem raízes. Você já as viu e, enfiando o dedo na boca, é capaz de senti-las, mas não consegue senti-las com a própria língua. É um paradoxo.
Paradoxo. A tartaruga e a lebre. Aquiles e... o que mesmo? A tartaruga? O tendão? A língua?
De volta à língua. Enquanto você pensava em outra coisa, ela parece que diminuiu de tamanho. Mas pensar nela faz com que torne a crescer. Por que será que suas bordas são ásperas? Será falta de vitaminas? Você já pensou isso antes, mas agora o pensamento grudou na sua língua. Aderiu à existência de sua língua.
Tudo isso levou menos de um minuto e ainda falta destrinchar o resto da frase, quando na verdade, você só queria decidir se ficava ou não de pé.
A viscosidade e a velocidade, embora opostas, podem parecer iguais. A viscosidade gera inércia da falta de inclinação; a velocidade gera inércia da fascinação. Quem observa não consegue saber se uma pessoa está calada e quieta porque sua vida interior estacionou ou porque a sua vida interior é de uma atividade paralisante.
O que as duas tem em comum é o pensamento repetitivo. As experiências parecem pré-gravadas, estilizadas. Padrões mentais específicos se ligam a movimentos ou atividades específicas e, sem que você perceba, torna-se impossível abordar aquele movimento ou atividade sem deslocar uma avalancha de pensamentos pré-pensados.
Uma avalancha letárgica de pensamentos sintéticos pode levar dias despencando. Uma parte da paralisia muda da viscosidade ocorre porque você sabe em detalhes o que vem pela frente e fica esperando sua chegada. Lá vem o pensamento " eu não presto". E nisso, lá se vai o dia de hoje. O dia inteiro, aquele pinga-pinga insistente, "eu não presto,eu não presto".  O pensamento seguinte, no dia seguinte, é " eu sou o Anjo da Morte". Por trás desse pensamento existe uma fulgurante extensão de pânico, uma extensão inalcançável. A viscosidade achata a efervescência do pânico.
Esses pensamentos não significam nada. São mantras idiotas que existem dentro de um ciclo predeterminado : Eu não presto, eu sou o Anjo da Morte, eu sou burra, eu não faço nada direito. O primeiro já desencadeia o resto do circuito. É como gripe: primeiro uma dor de garganta e depois, inexoravelmente o nariz entupido e a tosse.
Algum dia esses pensamentos devem ter significado alguma coisa. Devem ter significado o que afirmam. Mas a repetição tirou-lhe o gume. Tornaram-se música de fundo, o pot-pourri Muzak do ódio que sentimos de nós mesmos.
O que é pior, uma sobrecarga ou o seu contrário? Por sorte, nunca tive que escolher. As duas coisas se manifestavam, passavam correndo ou driblando por mim e seguiam adiante.
Adiante para onde? De volta para as minhas células, para ficarem à espreita como um vírus, esperando a próxima oportunidade? Para o éter do mundo, aguardando as circunstâncias que propiciariam seu reaparecimento? Endógeno ou exógeno, natureza ou educação — é o grande mistério da doença mental. 
 
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