quarta-feira, 20 de junho de 2012

Outra Lisa


Certo dia, chegou uma outra Lisa. Nós a chamávamos pelo seu nome completo, Lisa Cody, para diferenciá-la da verdadeira Lisa, que ficou simplesmente Lisa, como uma rainha.
As Lisas se tornaram amigas. Uma de suas atividades prediletas era conversar por telefone.
As três cabines telefônicas perto das portas duplas, com fechaduras duplas, constituíam a nossa única privacidade. Podíamos entrar nelas e fechar a porta. Até mesmo a mais maluca de nós podia se sentar numa das cabines e manter uma conversa particular, ainda que consigo mesma. As enfermeiras possuíam listas dos números aos quais podíamos ter acesso. Quando pegávamos o fone, a enfermeira atendia.
— Alô — dizíamos — Aqui é a Georgina ( ou a Cyntia, ou a Polly), quero ligar para o 555-4270
— Esse não consta na sua lista — dizia a enfermeira.
E cortava a linha.
Mas restava o silêncio empoeirado da cabine e o aparelho preto, antigo, com sua aresta dorsal bem pronunciada.
As Lisas conversavam por telefone. Cada uma entrava numa cabine, fechava a porta sanfonada e berrava dentro do fone. Quando a enfermeira atendia, Lisa gritava " sai da linha" . E as Lisas continuavam o papo. Às vezes se xingavam aos berros, outras vezes expunham, aos berros, os seus planos para aquele dia.
— Quer ir jantar no refeitório? — berrava Lisa Cody.
Mas Lisa, por estar confinada ao pavilhão, tinha que berrar de volta algo como " Pra que você quer comer aquela gororoba com aquele bando de psicóticas?"
Ao que Lisa Cody respondia, aos berros : — O que você pensa que é?
— Um sociopata! — bravateava Lisa.
Lisa Cody ainda não recebera seu diágnóstico.
Cynthia era depressiva; Polly e Georgina eram esquizofrênicas; eu tinha um distúrbio de personalidade. Quando recebi o meu diagnóstico, ele não me apareceu grave, mas com o tempo, acabou soando mais agourento que o das outras. Passei a achar a minha personalidade era como um prato ou uma camisa com defeito de fabricação e, consequentemente, inútil.
Depois de mais ou menos um mês conosco, Lisa Cody recebeu um diagnóstico. Também era uma sociopata. Ficou feliz, pois queria ser igual a Lisa em tudo. Lisa não ficou tão feliz, pois até então fora a única sociopata do grupo.
— Somos uma raridade — disse-me certa vez. — E geralmente somos homens.
Depois que Lisa Cody recebeu seu diagnóstico, as Lisas começaram a criar mais problemas.
— Vocês estão "atuando" — diziam as enfermeiras.
Nós sabíamos o que estava acontecendo. A verdadeira Lisa estava provando que Lisa Cody não era uma sociopata. 
Lisa passou uma semana escondendo seus soníferos debaixo da língua, depois engoliu-os todos de uma vez e passou um dia e uma noite inteiramente dopada. Lisa Cody só conseguiu esconder quatro e vomitou ao engoli-los. Lisa apagou um cigarro no braço às seis da manhã durante a mudança de turno das enfermeiras. Naquela tarde, Lisa Cody provocou uma queimadura minúscula no pulso e passou os vinte minutos seguintes molhando-o na agua da torneira.
Depois, as duas travaram uma guerra em torno de suas vidas progressas. Lisa conseguiu arrancar Lisa Cody que ela havia crescido em Greenwich, no Connecticut.
— Greenwich,Connecticut? Greenwich, no Connecticut. Ela escarneceu: de um lugar como aquele não poderia sair uma sociopata. — Vai me dizer que também foi debutante!
Bolinhas, tranquilizantes, cocaína, heroína — Lisa embarcara em todas. Lisa Cody disse que tambpem tinha sido drogada. Arregaçou ao longo da veia, como se alguma vez, há muitos anos, tivesse se enganchado na roseira.
— Uma viciada de bairro burguês — disse Lisa — Você estava brincando, isso sim.
— Peraí, cara, droga é droga — protestou Lisa Cody 
Lisa puxou a manga até o cotovelo e enfiou o braço debaixo do nariz de Lisa Cody. Seu braço era pontilhado de calombos escuros, nodosos e autênticos.
— Cicatriz é isto, cara — disse Lisa. — Quanto às suas, melhor nem falar.
Apesar de derrotada, Lisa Cody, não teve bom senso de desistir. Continuou a se sentar ao lado e Lisa no café da manhã e nas reuniões. Continuou a esperar na cabine telefônica por uma chamada que não vinha.
— Preciso me livrar dela — disse Lisa.
— Você é ruim, hein? — disse Polly.
— Vaca fodida — disse Lisa.
— Está falando de quem? — perguntou Cynthia, a protetora de Polly.
Mas Lisa não se deu ao trabalho de esclarecer.
Certa tarde, na hora do crepúsculo, quando as enfermeiras percorriam os corredores para ascender as luzes que davam uma iluminação espalhafatosa ao nosso pavilhão como uma parque de diversões, descobriam que todas as lâmpadas haviam desaparecido. Não estavam quebradas: haviam sumido.
Nós sabíamos quem havia feito aquilo. A questão era onde as guardara. No escuro, ficava difícil procurar. Até as lâmpadas dos quartos haviam desaparecido.
— Lisa é que tem um verdadeiro temperamento artístico — observou Georgina.
— Limitem-se a procurar! — disse a enfermeira-chefe.
— Todo mundo procurando.
Lisa passou a busca sentada na sala de TV.
Quem as achou foi Lisa Cody, como era de se esperar.
Na certa também planejara passar  a busca sentada no lugar que lhe trazia lembrança de dias melhores. Ao empurrar a sanfona da porta, deve ter sentido alguma resistência. — pois havia dúzias de lâmpadas elétricas lá dentro — mas ela insistiu, tal qual insistira com Lisa. O estrépito dos cacos nos levou correndo para as cabines.
— Quebradas — disse Lisa Cody.
Todo mundo quis saber como Lisa conseguira fazer aquilo. — Meu braço é comprido e magro — foi tudo o que ela disse.
Dois dias depois, Lisa Cody desapareceu. Em algum ponto entre o nosso pavilhão e o refeitório, conseguiu escapulir. Nunca a encontraram,, apesar de uma busca que durou mais de uma semana.
— Ela não conseguiu aguentar este lugar — disse Lisa.
E embora procurássemos identificar algum indício de inveja na sua voz, não notamos nenhum.
Alguns meses mais tarde, enquanto era levada para uma consulta ginecológica no Hospital Geral do Massachusetts, Lisa tornara a fugir: desta vez, conseguiu ganhar dois dias.
Quando voltou, parecia satisfeita consigo mesma.
— Estive com a Lisa Cody — disse.
— Ooooh — disse Georgina, enquanto Polly sacudia a cabeça.
— Ela é agora uma autêntica viciada — disse Lisa com um sorriso.
 
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